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quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Então você entende

 
 
 

Há muito tempo, nós não nos falávamos mais, porém ela me procurou no início daquela noite chuvosa. Ela sabia que eu estaria lá. Eu sempre fora previsível para Ísis.

  Verdade seja dita, eu não queria vê-la. Não desejava encarar seus olhos nublados e invasivos, que reviravam minha alma com facilidade. Não queria perceber pela milésima vez que enquanto ela conhecia tudo sobre mim eu não desvendava nem ao menos um de seus gestos.

  Virei as costas e observei o mar revolto, na esperança de que ela partisse. Mas ela fez justamente o oposto, e se aproximou. Não resisti e voltei a olhá-la. Seu cabelo estava molhado devido a chuva e seu rosto iluminados pela lua. Ísis estava mais velha e havia olheiras sob seus olhos. Seu olhar nunca esteve mais experiente, como se tivesse vivido por séculos. Tinha mantido os gestos tristes, por mais que ela pudesse demonstrar grande alegria pelo mais breve dos sorrisos.

  - Por que se esconde? – Ísis perguntou em tom habitual, fazendo com que eu me esforça-se a fazer uma leitura labial para poder compreendê-la diante do barulho da chuva. – Por que se esconde de mim?

  Seu vestido encharcado escorregou por seu corpo com a ajuda de seus dedos. A nudez não representava para nós nenhum tipo de sensualidade, mas a entrega, a não necessidade de pudores.

  - Não faça isso. Não desta vez. – eu disse. – Vai adoecer.

  - Você também não está com as vestes que lhe cobrem o peito. – ela chegou mais perto e encarou-me sem hesitação. – Sejamos verdadeiros.

  - Como fala de verdade se foi embora alegando que não podemos ficar juntos porque o mundo não permite? – tentei controlar a minha voz e meus sentimentos.

  - Um dia você entenderá por si mesmo. – a chuva despencava e banhava o rosto dela, não me permitindo identificar o que eram lágrimas e o que eram gotas de chuva. – Rezo para que me perdoe.

  - Você costumava contar a todos a história da Medusa. Uma moça linda de longos cabelos – enrosquei meus dedos em suas madeixas escuras. - que foi transformada em uma criatura que tornava aqueles que olhavam em seus olhos em pedra. – dei um passo para trás e retirei minha mão de seus cabelos. – Transformou-me em pedra e partiu-me em pedaços quando foi embora, Medusa.

  - Tenho uma missão a cumprir. – ela desviou os olhos com a firmeza que lhe era pertencente.

  - O que foi? Você é boa demais para mim? É isso o que todos dizem. Quer levar uma vida cheia de amor. Quer ser uma médica sem fronteiras, amar a todos.

  Instantaneamente percebi quanto rancor e infantilidade havia em minha voz. Ela era, de fato, boa demais para mim.

  - Se viesse comigo, poderíamos ajudar todas essas pessoas juntos. – ela tentou sorrir, mas minha ofensa parecia ter lhe atingido.

  - Não sou médico. Fui justamente treinado para manter a fome e a doença naqueles que você vai salvar. – pensei em meu emprego ingrato de alto escalão dentro de uma farmacêutica, que além de não fornecer os efeitos prometidos em seus medicamentos, ainda ocultava muitas curas para doenças terminais e implantava toxinas no ambiente de alguns lugares para que as pessoas adoecessem. – O melhor que fez foi me deixar para trás.

  - Então você entende. O mundo nos separa.
 
  Ela me olhou uma última vez e, sob a chuva, partiu.

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