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terça-feira, 26 de julho de 2016

30 de novembro de 2015.

vitrais:
“source: we heart it.
”


 
  Detesto quando ele acorda e vai embora. Faz com que eu me lembre que eu não tenho nada e não sou ninguém. Que pago algo que considero uma fortuna nesse cubículo que consideram um apartamento. E o pior: que ele me ajuda a pagar e nem se quer mora aqui. É um tiro no meu ego, mas é o que tenho.
  A luz esbranquiçada da manhã se esforça pra entrar pelas frestas da persiana, mas não chega a competir suficientemente com o abajur de luz laranja. Quando levanto da cama, tropeço e o derrubo. O quarto mal cabia a cama de casal que eu acho baixa demais e uma cômoda média para guardar minhas roupas, quase uma muda.
  Caminho até o banheiro e me olho no espelho. Imagino se Hugo se colocara ali antes de sair, se sorrira na frente daquela superfície refletora. Havia algo no raro sorriso dele...Sorrio e imagino nossos reflexos se encaixando. O reflexo dele estivera ali há algumas horas antes, e o meu estava ali agora. O tempo, mesmo que minimamente, separa as pessoas. Hugo não acredita no tempo. Logo, não existe pra ele. O tempo só pode machucar em quem acredita nele.
  Escovo os dentes e me enfio em baixo do chuveiro. A redonda e minúscula janela ilumina mal o cômodo, apesar de ser manhã. Quando enxáguo meu corpo, me sinto afundando. Era uma sensação parecida com o olhar de Hugo. Saio do chuveiro. Estava pensando demais nele. Talvez porque construíra um paraíso frágil, que no primeiro pôr do sol começava a ruir.
  Reparo que esqueci de pegar uma toalha limpa e deixo um rastro molhado por todo o caminho até ela. O vizinho do andar de baixo escuta rádio. Listen To Your Heart. Não era o que eu pretendia escutar essa manhã.
  Depois de me secar e encostar a toalha na janela do quarto, visto uma blusa listrada e uma calça jeans que eu usara no final de semana. Não é fácil se sentir um inútil no primeiro dia útil da semana.
  Olhando para o piso que tentava fracassadamente imitar madeira me pergunto quantos anos ele teria. Me pergunto o quão fracassada eu seria se fosse um piso tentando imitar madeira também.  É sempre por causa desses devaneios inúteis que eu me atraso. Não sei como ainda não fui demitida.
  Mesmo trabalhando em uma cafeteria mais ou menos, ainda tenho o hábito de tomar meu café em casa. Tenho a sensação que meu café em casa é muito melhor do que o da loja. Não sinto fome. Vejo um livro com uma capa muito feia em cima da mesinha redonda entre a sala e a cozinha. Um bilhete na capa dizia:
fui ali, ana.
 
 Sem letras maiúsculas, sem muito cuidado. Sem saber o por quê, eu gostava daquilo. Não do fato dele sempre sair sem avisar pra onde vai, quando volta. Mas do fato dele, ao menos, deixar um bilhete. Bilhete inútil, mas, ainda assim, um bilhete.
  Eu não sabia o que fazer a respeito dele. Eu não sabia o que fazer a respeito de nada.
  Joguei o livro dele na bolsa e com a mesma caneta que ele usara, escrevo em baixo:
to aqui, hugo.
 
 

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